terça-feira, 29 de junho de 2010

A porta não abre


“...eu ia indo e pulando as poças d’água com as pernas geladas.... e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era..... eu reaprendia e inventava sempre, sempre em direção a ele, para chegar inteiro, os pedaços de mim todos misturados que ele disporia sem pressa, como quem brinca com um quebra-cabeça para formar que castelo, que bosque, que verme ou deus, eu não sabia, mas ia indo pela chuva porque esse era meu único sentido, meu único destino: bater naquela porta escura onde eu batia agora. E bati, e bati outra vez, e tornei a bater, e continuei batendo sem me importar que as pessoas na rua parassem para olhar, eu quis chamá-lo, mas tinha esquecido seu nome, se é que alguma vez o soube, se é que ele o teve um dia, talvez eu tivesse febre, tudo ficara muito confuso, idéias misturadas, tremores, água de chuva e lama e conhaque no meu corpo sujo gasto exausto batendo feito louco naquela porta que não abria, era tudo um engano, eu continuava batendo e continuava chovendo sem parar, mas eu não ia mais indo por dentro da chuva, pelo meio da cidade, eu só estava parado naquela porta fazia muito tempo, depois do ponto, tão escuro agora que eu não conseguiria nunca mais encontrar o caminho de volta, nem tentar outra coisa, outra ação, outro gesto além de continuar batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo”

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Ouvi, gostei, guardei: skank

Se você olhar um pouco ao seu redor
Vai poder notar que a noite já caiu
Se você voltar pra casa e não achar ninguém
Vai notar que na cidade falta alguém

Se você ligar o rádio
Todas as canções irão dizer: Goodbye, so long, my love

Se você ligar o rádio
Todas elas juntas vão dizer: é tarde

Se você perdeu agora a ilusão
De que os fatos eram fios em suas mãos
Vai querer tirar do armário o velho violão
Vai notar que ainda falta uma canção

Se você ligar o rádio
Todas as canções irão dizer: Goodbye, so long, my love

Você vai deixar na lista
Das tarefas de amanhã: chorar mais tarde

E quando o sol da manhã bater na porta
E quando nada lá fora agora importa
Tudo bem, é tarde

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Muito bem.


Sim, eu estou bem. Mudei um pouco, depois que você me deixou, mas estou bem. Antes eu não sabia que as pessoas fingiam sentir carinho, agora eu sei. Daí descobri: meu erro foi não saber fingir. Desde criança fui sincera, mas com você fui mais. Justo quem menos merecia. Passei a dormir na cama em que dormia na infância, pra me sentir protegida da incredulidade. Preciso de algumas ilusões de volta. Desde que você me deixou, tenho medo. Medo de acreditar, medo de confiar, medo dos elogios, medo de me aproximar, me encantar e depois perder. Mas estou bem, afinal, se era tudo mentira, nunca existiu... E se nunca existiu, eu nunca tive... E se eu nunca tive, posso viver muito bem sem, pois eu vivia muito bem antes disso...  Por enquanto estou só bem, mas em breve estarei muito bem. Nem vou me lembrar que um dia uma mentira pareceu existir, de um modo encantador, e de repente se desfez. Só vou me lembrar da mentira que você é.


terça-feira, 22 de junho de 2010

A uva e o vinho.

Um homem dos vinhedos falou, em agonia, junto ao ouvido de Marcela. Antes de morrer, revelou a ela o segredo:
- A uva - susurrou- é feita de vinho.
Marcela Péres Silva me contou isso, e eu pensei: se a uva é feita de vinho, talvez a gente seja as palavras que contam o que a gente é.

sábado, 12 de junho de 2010

Nothing special, baby!

Mas, eu quero dizer, e ela me corta mansa, claro que você não tem culpa, coração, caímos exatamente na mesma ratoeira, a única diferença é que você pensa que pode escapar, e eu quero chafurdar na dor deste ferro enfiado fundo na minha garganta seca que só umedece com vodca, me passa o cigarro, não, não estou desesperada, não mais do que sempre estive, nothing special, baby, não estou louca nem bêbada, estou é lúcida pra caralho e sei claramente que não tenho nenhuma saída, ah não se preocupe, meu bem, depois que você sair tomo banho frio, leite quente com mel de eucalipto, gin-seng e lexotan, depois deito, depois durmo, depois acordo e passo uma semana a banchá e arroz integral, absolutamente santa, absolutamente pura, absolutamente limpa, depois tomo outro porre.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Boa pergunta.





  O que é que se consegue quando se fica feliz?, sua voz era uma seta clara e fina. A professora olhou para Joana,
  Repita a pergunta...?
Silêncio. A professora sorriu arrumando os li­vros.
  Pergunte de novo, Joana, eu é que não ouvi.
  Queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois? — repetiu a menina com obstinação.
A mulher encarava-a surpresa.
  Que idéia! Acho que não sei o que você quer dizer, que idéia! Faça a mesma pergunta com outras palavras...
  Ser feliz é para se conseguir o quê?
A professora enrubesceu — nunca se sabia di­zer por que ela avermelhava. Notou toda a turma, mandou-a dispersar para o recreio.
O servente veio chamar a menina para o gabi­nete. A professora lá se achava:
  Sente-se... Brincou muito?
  Um pouco...
  Que é que você vai ser quando for grande?
  Não sei.
  Bem. Olhe, eu tive também uma idéia — corou.
  Pegue num pedaço de papel, escreva essa pergunta que você me fez hoje e guarde-a durante muito tempo. Quando você for grande leia-a de novo. — Olhou-a. — Quem sabe? Talvez um dia você mesma possa respondê-la de algum modo... — Perdeu o ar sério, corou. — Ou talvez isso não tenha importância e pelo menos você se divertirá com...
  Não.
  Não o quê? — perguntou surpresa a pro­fessora.
  Não gosto de me divertir, disse Joana com orgulho.
A professora ficou novamente rosada:
  Bem, vá brincar.
Quando Joana estava à porta em dois pulos, a professora chamou-a de novo, dessa vez corada até o pescoço, os olhos baixos, remexendo papéis sobre a mesa:
— Você não achou esquisito... engraçado eu mandar você escrever a pergunta para guardar?
  Não, disse. Voltou para o pátio.