segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A noite será devagar



bem, aqui estou eu
de novo
ouvindo as boas e velhas
músicas
de novo,
sentindo tristeza,
a boa
tristeza
à moda antiga
em que as lágrimas
não chegam
a sair.
bom.
ouço mais um pouco.

a mente pode
consumir quantidades
mágicas de
memória
enquanto a noite se
desdobra
noite adentro,
enquanto outro charuto
é acesso,
como se pode ficar
terrivelmente amuado
quando velhas
músicas seguem-se
uma às
outras,
rostos são
lembradas,
rostos jovens,
como fatias novas de uma
maçã,
estão mortos
agora,
quase todos
eles
mortos
agora.

a aparente
beleza e
a aparente bravura,
se foram.

sentado aqui
permitindo que meus
melhores sentidos
sejam diluídos pela
melancolia,
um homem
velho,
lembrando
de novo,
olhando de cima
a baixo o bar imaginário
cheio de assentos
vazios,
pensando naquela
criança com os loucos
olhos
vermelhos
que sentava lá
enchendo o copo e
enchendo e enchendo e
enchendo
de novo
ao ponto da
imbecilidade,
agora lembrando,
ouvindo
de novo,
permitindo a idiotice
entrar
de novo,
somos todos
idiotas para sempre
idiotizados
para sempre.
alegremente.
agora.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Ouvi, gostei, guardei. I




"Um mundo inteiro


Tão abstrato


Tantos governos


Tantos contratos


Tantos famintos


Nos meus pijamas


Novas saídas


Todas semanas

E eu só quero entender


Eu só quero entender


Mas...

Pensar é um saco!

Eu fui embora


Sem ter remorso


Pedi desculpas


Mas foi bem fácil


Houve você


Houve uns amigos


Houve perguntas


Pelos motivos

E eu até quero saber


Eu até quero saber


Mas...

Pensar é um saco!

Ninguém me gosta


Pensar é um saco


Eu sou um bosta


Eu sou um fiasco,


eu sou um fiasco,


eu sou um fiasco,


eu sou um fiasco

Pensar é um saco!"




Ecos Falsos






segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Adoro a fatalidade.

"Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina é macio. Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se fossem dados: adoro a fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma idéia. Cada palavra materializa o espírito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento. Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o invólucro mais fino dos nossos pensamentos."


sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Faça sua escolha: ilusão ou tédio?


Que a vida humana tem de ser um tipo qualquer de erro é suficiente demonstrar pela simples observação seguinte: o homem é um composto de necessidades que são difíceis de satisfazer; a sua satisfação nada alcança a não ser uma condição dolorosa na qual o homem sucumbe ao tédio; e o tédio é uma demonstração directa de que a existência não tem em si qualquer valor, pois o tédio não é senão a sensação de que a existência é vazia. Pois se a vida, que a nossa essência e existência deseja, tivesse em si um valor positivo e um conteúdo real, o tédio seria coisa que não existiria: a mera existência seria suficiente para nos realizar e satisfazer. Tal como as coisas são, não temos qualquer prazer na existência excepto quando lutamos por algo — caso em que a distância e as dificuldades fazem o nosso objectivo parecer algo que nos satisfaria (uma ilusão que desaparece quando o alcançamos) — ou quando nos entregamos à actividade puramente intelectual, caso em que estamos na realidade a sair da vida como que para a olharmos a partir do exterior, como espectadores numa peça de teatro. Mesmo o próprio prazer sensual consiste numa luta contínua e cessa mal o seu objectivo foi atingido. Sempre que não estamos envolvidos numa ou noutra destas coisas, mas antes damos atenção à própria existência somos assaltados pela sua ausência de valor e fatuidade e esta é a sensação a que se chama "tédio". (Arthur Schopenhauer, "Da Vacuidade da Existência", p. 69)

Os palpites do Bispo de Hipona

"Há uma maneira diferente de ser feliz, quando cada um possui a felicidade em concreto. Há quem seja feliz simplesmente em esperança. Estes possuem a felicidade dum modo inferior ao daqueles que já são realmente felizes. Mas, ainda assim, estão muito melhor que aqueles que não têm nem a felicidade, nem a sua esperança. Mesmo estes devem experimentá-la de qualquer modo, porque, no caso contrário, não desejariam ser felizes. Ora, é absolutamente certo que eles o querem ser.


Não sei como conheceram a felicidade, nem por que noção a apreenderam. O que me preocupa é saber se essa noção habita na memória. Se lá existe, é sinal de que alguma vez já fomos felizes. Eu agora não procuro indagar se fomos todos felizes individualmente, ou se fomos somente naquele homem que primeiro pecou, em que todos morremos, e nascemos na infelicidade. O que eu quero saber é se a vida feliz reside ou não na memória. Se a não conhecêssemos, não a podíamos amar.


Mal ouvimos este nome, "felicidade", imediatamente temos de confessar que é isso mesmo o que apetecemos; não nos deleitamos simplesmente com o som da palavra. Quando um grego ouve pronunciar esse vocábulo em latim, não se deleita, porque ignora o sentido. Mas nós deleitamo-nos; e ele também se deleita, se ouve em grego, porque a felicidade real não é grega nem latina, mas os gregos, os latinos e os homens de todas as línguas têm um desejo ardente de a alcançar. E assim, se fosse possível perguntar-lhes a uma só voz se "queriam ser felizes", todos, sem hesitação, responderiam que sim.


O que não aconteceria, se a memória não conservasse a própria realidade, significada nessa palavra.

(...)


31. Onde e quando experimentei a vida feliz, para a poder recordar, amar e desejar? Não sou eu o único, nem são poucos os que a desejam. Todos, absolutamente todos, querem ser felizes. Se não conhecêssemos a vida feliz por uma noção certa, não a desejaríamos com tão firme vontade. Que significa isto?

Se perguntarmos a dois homens se querem alistar-se no exército, é possível que um responda que sim, outro que não. Porém, se lhes perguntarmos se querem ser felizes, ambos dizem logo, sem hesitação, que sim, que o desejam, porque tanto o que quer ser militar como o que não quer têm um só fim em vista: o serem felizes. Opta um por um emprego, e outro por outro. Mas ambos são unânimes em quererem ser felizes, como o seriam também se lhes perguntassem se queriam ter alegria. De fato, já chamam felicidade à alegria. Ainda que um siga por um caminho e outro por outro, esforçam-se por chegar a um só fim, que é alegrarem-se. Como ninguém pode dizer que não experimentou a alegria, encontramo-la na memória e reconhecemo-la sempre que dela ouvimos falar.


(...)


33. Poderemos então concluir que nem todos querem ser felizes porque há alguns que não querem alegrar-se em Vós, que sois a única vida feliz? Não; todos querem uma vida feliz. Mas como "a carne combate contra o espírito e o espírito contra a carne, muitos não fazem o que querem, mas entregam-se àquilo que podem fazer. Com isso se contentam, porque aquilo que não podem realizar, não o querem com a vontade quanta é necessária para o poderem fazer."





quarta-feira, 11 de novembro de 2009

O cara pop

“A crise dá a sensação de que algo está se movendo, quando nada se move.

A crise dá ao político uma allure de urgência, uma sensação de utilidade.

A crise estimula os senadores e deputados.

A crise dá boa consciência ao congressista, dá a impressão de

que ele está fazendo muito.

A crise gera uma espécie de metatrabalho, um tremelique que parece esforço.

A crise dá ao político a sensação de que sua preocupação é útil.

A crise permite rostos graves, frontes preocupadas, que sempre impressionam os leitores.

A crise cria um suspense, a vida fica mais excitante.

A crise é um thriller.

A crise estimula a inteligência.

A crise é assunto.

Todos escrevem sobre a crise, como se fosse uma musa, uma mulher.

A crise não é uma mulher.

Se bem que a crise é boa para

justificar broxadas: ‘Minha filha... desculpe... é a crise...’

A crise anseia por uma estética.

Por uma estética da crise.

A crise criou discursos, que se digladiam pelos louros do aceito.

A saber:

1) O discurso clamor à nação;

2) O apocalíptico clássico ou discreto-científico;

3) O apocalíptico barroco ou Sudene-tardio.

(...)

O discurso apocalíptico clássico é culto, mantém a calma acadêmica diante do caos e descreve nossa morte com minúcias sádicas.

É típico de discretos professores e altos sociólogos.

É puro de alma e prova com lógica as impossibilidades de nossa salvação.

Prevê o dia final com alegria científica.

Este discurso pode pedir impeachment ou golpe com distanciamento brechtiano.

É o inócuo com doutorado, o beco-sem-saída com PhD.

Já o apocalíptico barroco é mais para impressionar eleitor que para impressionar Campinas, mais sinfônico, saboroso como comida nordestina, faturando nossa desgraça com os mesmos adjetivos para conseguir um açude.

Nestes, a crise é boa para fazer lobby para descolar verbas.

A crise é boa para reeleição.

A crise é boa para 1994.

A crise é uma eucaristia.

A crise limpa o autor dos discursos, os artigos.

Todos são culpados, menos o orador, o ensaísta.

A crise tem esta serventia também: limpar pessoas.

A crise lava pessoas como as Bahamas lavam dinheiro.

A crise é boa para limpar prestígios. Corrupto vira reformador moral.

A crise é uma eucaristia.

A crise acostuma a população à impunidade e assim a conformiza, permitindo mais corrupção.

A impunidade é o marketing da impunidade.

A crise é boa para ex-presidentes que passam à História como bons governantes.

A crise dá um novo alento à esquerda, dando a ela a impressão de que velhas teses podem ser recauchutadas.

A crise dá meia-sola em Lênin.

A crise substituiu a boa consciência perdida pelas esquerdas, tão deprimidas com a queda da URSS.

A crise é a cocaína das esquerdas.

(...)

A crise é boa para a sociedade civil, já que ninguém sabe onde está a sociedade civil. Onde está a sociedade civil?

Vendo a Globo?

No shopping center?

No Fasano?

Na Europa?

A crise é boa para achar a sociedade civil.

A crise é boa para aumentar o contato com o absurdo, logo, com o mistério da vida. Neste sentido a crise é filosófica.

Aumenta a profundidade dos políticos.

Daí dizer-se: ‘É profunda a crise..’

A crise é boa para o messianismo.

Pode fazer surgir salvadores da pátria, assim devolvendo um sentido épico à nossa existência.

Pode restaurar utopias.

Assim, acabar com a ópera seca da pósmodernidade.

A crise é neoclássica, uma renascença.

A crise é democrática como a morte: ela poderá atingir a todos, com exceção dos políticos, claro, que ganham bem e podem ficar intocados pela adversidade.

Assim, a crise é equalitária, fraternal.

O caos ou o pântano

A crise é boa para nos levar a uma definição.

Por exemplo: quando começa o caos?

Já começou?

O que é o caos, onde é?

A crise será boa para matar esta curiosidade.

Temos um insano desejo de conhecer o caos.

A crise é generosa. Ela dá opções.

(...)

Tem gente que prefere o caos, seus traços duros, a tragédia a pino.

Já outros preferem o pântano, como os sapos.

Creio mesmo que a tendência brasileira preferirá o pântano, o brejo, o brejal das almas, o bosteiro, porque além de ter mais a ver com nosso regionalismo, com nosso folclore, é mais administrável.

O pântano dura séculos: é melhor.

Já o caos não combina tanto com nossa alma cordial.

O caos é um negócio muito radical, meio anglosaxão, meio eslavo.

Já o doce pântano é mais Brasil... sapos coaxando no Congresso, uma greve ali, uma matança de flagelados e invasores acolá, a sudanização do Nordeste (que aliás permitirá ótimas fotografias como as da África: confira Photos, Zoom etc.), com os negros

magérrimos, chiquérrimos, com grande dignidade na miséria.

Altos visuais proletários.

A crise é boa para a art direction, neste sentido.

(...)

O dia em que a crise for embora, o que faremos?

O que será de nós, sem assunto, sem tremor, relegados a tarefas menores como, digamos... trabalhar?

Teremos então um intenso tédio conjugal pela Pátria.”


“Os canibais estão na sala de jantar”, 1993.



A filosofia dele


“Querem saber como comecei a desenvolver minha filosofia? Foi assim: Minha mulher, ao convidar-me para provar o primeiro suflê de sua vida, deixou cair acidentalmente uma fatia dele no meu pé, fraturando com isso diversos artelhos. Médicos foram chamados, raios X tirados e, depois de examinado do tornozelo aos pés, mandaram-me ficar de cama durante um mês. Durante a convalescença,dediquei-me ao estudo dos maiores pensadores ocidentais - uma pilha de livros que eu havia reservado justamente para uma oportunidade dessas. Desprezando a ordem cronológica, comecei por Kierkegaard e Sartre e depois passei rapidamentepara Spinoza, Hume, Kafka e Camus. Não me entediei nem um pouco, como supunha. Ao contrário, fiquei fascinado pela lepidez com que esses gênios demoliam a moral, a arte, a ética, a vida e a morte. Lembro-me de minha reação a uma observação (como sempre, luminosa) de Kierkegaard: ‘Toda relação que se relaciona consigo mesma (ou seja, consigo mesma) deve ter sido constituída por si mesma ou então por outra.’ O conceito trouxe lágrimas aos meus olhos. Puxa vida! - pensei - isso é que e ser profundo! (Eu, por exemplo, sempre tive dificuldades na escola com aquele clássico tema de composição, “Meu Dia no Zoológico”.) É verdade que a frase continuava completamente incompreensível para mim, mas que importava isto, desde que Kierkegaard estivesse se divertindo? De súbito, convencido de que a metafísica era a obra que eu estava destinado a escrever, tomei papel e lápis e comecei a rascunhar minhas primeiras reflexões. O trabalho progrediu depressa, e em apenas duas tardes - com intervalo para uma soneca e para assistir a um desenho animado - consegui completar a obra filosófica que, segundo espero, não será divulgada antes de minha morte ou até o ano 3000 (o quevier primeiro), e a qual me garantirá um lugar de honra entre os maiores pensadores da História. Eis aqui uma pequena amostra do tesouro intelectual que deixarei para a humanidade - ou pelo menos, até a chegada da arrumadeira.

1. Crítica do Horror Puro

Ao formular qualquer filosofia, a primeira consideração sempre deve ser: O que nós podemos conhecer? Isto é, o que” podemos ter certeza de conhecer ou de saber que conhecemos, desde que seja algo conhecível, é claro. Ou será que já esquecemos e estamos apenas com vergonha de admitir? Descartes roçou o problema quando escreveu: “Minha mente nunca poderá conhecer meu corpo, embora tenha ficado bastante íntima de minhas pernas.” E, antes que me esqueça, por “conhecível” não me refiro ao que pode ser conhecido pela percepção dos sentidos ou ao que pode ser captado pela mente, mas ao que se pode garantir ser Conhecido por possuir aquela característica que chamamos de Conhecibilidade pelo Conhecimento - embora nem todos esses conhecimentos possam ser ditos na frente de uma senhora.

Será que podemos realmente “conhecer” o universo? Meu Deus, se às vezes já e difícil sairmos de um engarrafamento! O problema, no fundo, c: há alguma coisa lá? E por quê? E por que tem que fazer tanto barulho? Finalmente, não há dúvida de que uma característica da “realidade” é a de que lhe falia substância. Não quero dizer com isso que ela não tenha substância, mas apenas que lhe falia. (A realidade de que estou falando aqui e a mesma que Hobbes descreveu, só que um pouquinho menor.) Logo, o dito cartesiano “Penso, logo existo” seria melhor expresso na forma de “Olhe, lá vai Edna com o saxofone!” Do que se deduz que, para conhecer uma substância ou uma idéia, devemos duvidar dela e, ao duvidar, chegamos a perceber as características que ela possui em seu estado finito, as quais são “por si mesmas” ou “de si mesmas” ou de qualquer outra coisa que não tem nada a ver. Se isto ficou claro, podemos deixar a epistemologia de lado provisoriamente, e mudar de assunto.

2. A Dialética Escatológica como um Meio de Combater o Herpes

Podemos dizer que o universo consiste de uma substância, e a esta substância chamaremos de “átomos” ou, quem sabe, de “mônadas”. Demócrito chamava-a de átomos. Leibnitz preferia “mônadas”. Felizmente, os dois nunca se encontraram, se não teríamos pancadaria da grossa. Estas “partículas” foram acionadas por alguma causa ou princípio subjacente, ou talvez tenham apenas resolvido dar uma voltinha. O fato é que já é tarde para fazer qualquer coisa a respeito, exceto provavelmente escovar os dentes quatro vezes ao dia. Isto, naturalmente, não explica a imortalidade da alma. Não implica sequer a existência da alma nem chega a me tranqüilizar quanto à sensação de estar sendo seguido por um guatemalteco. A relação causal entre o princípio-motor (i.e., Deus, ou uma ventania) e qualquer conceito teológico do ser (em outras palavras, o Ser) é, segundo Pascal, “tão lúbrica que nem chega a ser engraçada”. (Ou seja, Engraçada.) Schopenhauer chamou a isto “o vir-a-ser”, mas seu médico diagnosticou-o simplesmente como alergia a penas de ganso. No fim da vida, Schopenhauer tornou-se amargurado por este conceito, ou talvez tenha sido pela sua crescente suspeita de que não era Mozart.

3- O Cosmos a 5 Dólares por Dia

O que é, então, o “belo”? A fusão da harmonia com a virtude? Ou da harmonia com qualquer outra coisa que apenas rima com Virtude? Se a harmonia se tivesse fundido com um alaúde, o mundo seria muito mais tranqüilo. A verdade, como se sabe, é a beleza - ou “o necessário”. Isto é, o que é bom ou possui as características do “bom” resulta na “verdade”. Se isto não acontecer, pode ter certeza de que a tal coisa não é bela, embora possa ser até à prova d’água. Começo a me convencer de que tinha razão, e que tudo devia rimar com alaúde. Ora bolas.

Duas Parábolas

Um homem aproxima-se de um castelo. Sua única entrada está guardada por hunos ferocíssimos que só o deixarão entrar se ele se chamar Julius. O homem tenta subornar os guardas,oferecendo-lhes o seu estoque de fígados e moelas de galinhas. Não recusam nem aceitam a oferta - apenas torcem o seu nariz como se ele fosse um saca-rolhas. O homem argumenta que precisa entrar no castelo, porque está levando uma ceroula limpa para o imperador. Os guardas dizem não outra vez e o homem começa a dançar charleston. Eles parecem apreciar sua agilidade, mas logo se irritam porque se lembram da maneira pela qual o governo está tratando os índios. Já sem fôlego, o homem desmaia e morre, sem nunca ter visto o imperador e devendo a uma loja de eletrodomésticos um piano que havia comprado a prazo.

*

Recebo uma mensagem para entregar a um general. Galopo, galopo e galopo, mas o quartel do general parece cada vez mais distante. De repente, uma pantera negra gigante salta sobre mim e devora meu coração e cérebro. É claro que isso estraga definitivamente a minha noite. Por mais que eu corra, já não consigo chegar ao general, o qual vejo a distância, de cuecas, murmurando a palavra “nozmoscada”contra seus inimigos.

Aforismos

É impossível encarar a própria morte objetivamente e assoviar ao mesmo

tempo.

*

O universo não passa de uma idéia passageira na mente de Deus - o que e um pensamento duplamente desagradável se você tiver acabado de pagar a entrada da sua casa própria.

*

Não há nada de mal com a vida eterna, desde que você esteja convenientemente vestido para ela.

*

Imaginem se Dionísio ainda estivesse vivo! Onde iria comer? Não apenas não existe Deus, como tente encontrar um bombeiro num fim de semana.

Retirado de: “Cuca Fundida”



Bispo de Hipona

“Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei!

Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar-Vos!

Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes.

Estáveis comigo, e eu não estava convosco!

Retinha-me longe de Vós aquilo que não existiria se não existisse em Vós.

Porém chamastes-me com uma voz tão forte que rompestes a minha surdez! Brilhastes, cintilastes e logo afugentastes a minha cegueira!

Exalastes perfume: respirei-o, suspirando por Vós.

Saboreei-Vos, e agora tenho fome e sede de Vós.

Tocastes-me e ardi no desejo da vossa paz!”

Li, da primeira vez, na agenda do Colégio. Ainda deve ser encontrado em qualquer agenda da rede Agostiniana, e também no volume de Santo Agostinho, da série os Pensadores.





O Ovo


“Um domingo que saí a caminhar, me lembrei da montanha.

Subi até lá e de novo vi a parede.

Parecia mais clara, mais perto.

Voltei pra casa e disse mãe tem uma parede branca além do horizonte.

Eu já tinha uns vinte e dois anos, mas ela chamou meu pai e mandou eu repetir o que tinha dito.

Eu repeti e ele me deu uma bofetada na cara.

A mãe começou a chorar e pediu pra eu nunca contar a ninguém que tinha visto a parede.

Mas eu estava uma fera.

Chamei meu pai de filho da puta, disse que ele só me batia na cara porque era um velho e era meu pai e sabia que eu não era filho da puta ao ponto de bater num velho que ainda por cima era meu pai.

Arrumei minhas coisas e saí de casa.

Fui pra uma pensão.

(...)

Eu ia à montanha todos os domingos, e a parede lá estava, cada vez mais próxima.

Eu não queria contar a ninguém, iam pensar que eu era louco.

Então comecei a ler uns livros pra ver se a tal parede era uma coisa natural.

Mas nos livros de geografia não havia paredes brancas.

Falava de terras, mares.

Os de astronomia de estrelas, cometas.

De paredes, nada.

Os outros livros que eu lia também não.

O máximo de estranheza que contava era dum sujeito que se transformou em barata -ele devia ser soldado da brigada.

Um dia eu comecei a andar em direção à parede.

Ela estava muito longe.

Caminhei quase um dia inteiro, até que ficou noite e tive que pedir carona a um menino carroceiro.

Quando cheguei na pensão procurei o velho fresco, que já foi puxando a carteira do bolso pra me dar mais dinheiro.

Mas eu disse que não era nada daquilo, e contei da parede.

Aí o velho fresco começou a gritar até que veio todo o mundo da pensão.

Ele apontava pra mim com ar de pavor e berrava ele viu, ele viu!

Ninguém perguntou o que eu tinha visto.

Só mandaram pegar as minhas coisas e dar o fora antes que chamassem a polícia.

Daí eu coloquei os troços na mala e fui saindo.

Quando cheguei à praça, disposto a passar a noite num banco, olhei para o horizonte e vi a parede.

Estava muito perto, era muito branca.

Era domingo, a praça cheia de gente passeando, os rapazes tomando cerveja no quiosque, as mocinhas caminhando de braços dados.

Subi num banco, chamei todo o mundo para mostrar a parede.

Ficou cheio de gente em volta de mim, um silêncio desses horríveis, havia uma porção de caras, eu olhava uma por uma buscando um sinal qualquer de reconhecimento, mas os olhos de todos estavam enormes, as bocas pareciam costuradas, as sobrancelhas unidas.

De repente uns me seguraram enquanto os outros iam chamar os três.

Os três vieram.

De branco, da mesma cor da parede: uma mulher com um chifre no meio da testa, um homem com três olhos e outro com vários braços, como um polvo.

O de vários braços me segurou pelas costas enquanto o de três olhos ia abrindo caminho e a mulher me empurrava com o chifre.

As gentes falavam palavrões e me cuspiam enquanto eu ia saindo.

Eu caminhava devagar, via a parede atrás da igreja, dos campos, olhei para cima e também lá estava a parede, escondendo as estrelas.

Antes de eles me jogarem no caminhão, olhei para trás e vi minha mãe e meu pai muito velhinhos, de braços dados.

Pedi pra eles me salvarem, mas eles sacudiram com ódio a cabeça, o meu pai me mostrou o punho fechado e minha mãe escarrou no meu rosto.

Os três me jogaram dentro do caminhão, a mulher de chifre dirigia, os dois outros me seguravam.

Então me trouxeram para cá.

Todos os dias a mulher de chifre me traz as refeições, ao mesmo tempo em que o de vários braços me segura, o de três olhos coloca uns fios na minha cabeça e eu sinto uma coisa estranha, um tremor em todo o corpo, depois caio num sono pesado e só acordo à tarde.

Saio na janela espio.

E vejo a parede.

Cada dia mais próxima.

Eu queria contar toda a minha vida para se alguém lesse visse que não sou louco, que sempre foi tudo normal comigo, que eu fiz e disse as coisas que todo o mundo faz e diz...

(...)

Que eu via a parede e que todos os outros também viam, tenho certeza, só que eles não queriam ver, não sei por que, e prendiam quem via.

Ontem chamei o de três olhos, que parece o mais simpático, mostrei a parede, perguntei se ele não via.

Falei devagar, sem me exaltar nem nada.

Aí ele ficou quieto e baixou a cabeça, acho que sentiu vergonha de fazer o que está fazendo, porque ele também vê.

E ela está cada vez mais perto.

Só ontem cheguei à conclusão de que se trata de um enorme ovo.

Que estamos todos dentro dele.

Mas é um ovo que diminui cada vez mais, cada vez mais, nós vamos ser todos esmagados por ele.

Não sei por que os homens não se armam de paus e pedras para furar a parede.

Seria muito fácil, a casca de um ovo é tão frágil.

Ele já está meio azulado de tão próximo, não se vê mais as estrelas, nem a lua, nem o sol.

A escuridão em que passamos o dia todo é meio azulada também.

O silêncio é imenso, como se houvesse um grande vácuo aqui dentro.

A cada dia o movimento do ovo fica mais rápido.

Ontem, já havia ultrapassado o muro, estava a uns cem metros da minha janela. Amanhã vai estar do lado da janela, talvez já esteja, não ouço mais os passos da mulher de chifre caminhando pelos corredores com as chaves penduradas na cintura e -agora lembro -o de três olhos e o de muitos braços não me deram choques hoje.

Acho que eles estão fora do ovo, e só eu dentro.

Talvez cada um tenha o seu próprio ovo.

E este é o meu.

Olho para o meu corpo.

Será que ele cabe dentro de um ovo?

Será que não vai doer?

Eu não sei.

Tenho tanto medo.

Estou esperando, cansei de escrever, a vela está quase apagando.

Vou deitar.

Estou ouvindo o rumor do ovo se aproximando cada vez mais.

É um barulho leve, leve.

Quase como um suspiro de gente cansada.

Está muito perto.

Tão perto que ninguém vai me ouvir se eu gritar.”


Caio Fernando Abreu, em Inventário do Ir-remediável.




terça-feira, 10 de novembro de 2009

Avesso

"Abri curiosa o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.
Eu queria rir, chorar,
ou pelo menos sorrir
com a mesma leveza com que os ares me beijavam.
 
Eu queria entrar, coração ante coração, 
inteiriça,
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando.
 
Eu queria até mesmo saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas 
cada pedacinho de matéria viva.
 
Eu queria 
(só) 
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.
 
Eu queria apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.
 
Eu queria 
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço 
nu e cheio.
 
Eu queria ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las.
 
Eu não sabia
que virar do avesso
era uma experiência mortal."


Ana C.




Conversa de Cavalheiros

LORD CAVERSHAM: - Ah, para o inferno com o interesse pelos problemas dos outros! Há um excesso desse tipo de coisa hoje em dia.
LORD GORING: - Concordo com o senhor, pai. Se houvesse menos disso no mundo, existiriam menos problemas nele.
LORD CAVERSHAM (Dirigindo-se para a fumoir.):
-Isto é um paradoxo. Detesto paradoxos.
LORD GORING: -Eu também, pai. Todo mundo que a gente encontra hoje em dia é um paradoxo. É muito enfadonho. Torna a sociedade muito óbvia.
LORD CAVERSHAM (Virando-se e olhando para o filho por baixo de suas espessas sobrancelhas.): -O senhor sempre compreende realmente o que diz?
LORD GORING (Depois de um pouco de hesitação.): -Quando ouço com atenção, pai.

Um Marido Ideal, Oscar Wilde.



Corujas


“Tinham um olhar dentro, de quem olha fixo e sacode a cabeça, acenando como se numa penetração entrassem fundo demais, concordando, refletidas. Olhavam fixo, pupilas perdidas na extensão amarelada das órbitas, e concordavam mudas. A sabedoria humilhante de quem percebe coisas apenas suspeitas pelos outros. Jamais saberíamos das conclusões a que chegavam, mas oblíquos olhávamos em tomo numa desconfiança que só findava com algum gesto ou palavra.


Nem sempre oportunos. O fato é que tínhamos medo, ou quem sabe alguma espécie de respeito grande, de quem se vê menor frente a outros seres mais fortes e inexplicáveis. Medo por carência de outra palavra para. melhor definir o sentimento escorregadio na gente, de leve escapando para um canto da consciência de onde, ressabiado, espreitaria. E enveredávamos então pelo caminho do fácil, tentando suavizar o que não era suave. Recusando-lhes o mistério, recusávamos o nosso próprio medo e as encarávamos rotulando-as sem problema como ‘irracionais’, relegando-as ao mundo bruto a que deviam forçosamente pertencer


(...)


Minha mãe sorriu-lhes, tentando a primeira carícia, recusada talvez por inexperiência de afeto. Contudo, não as penetrou fundo, anexando-as inofensivas em seu esparramar de bondade sem precauções.

Foram as crianças as primeiras a hesitar, num recuo que seria de ofensa se pertencesse à gente grande. Crianças trocaram assombros frente à estranheza dos bichos nunca antes vistos. Por terem menos tempo de existência eram talvez as mais vulneráveis ao mistério. O viver constante demorado e desiludido dos outros, acostumados a dureza, não podendo por caminhos diretos render-se à solicitação dos olhos delas. Mas a inexperiência das crianças levava-as ao extremo oposto de desrespeitá-las em sua individualidade, trazendo-as sem cerimônias para seu mundo de brinquedos. Perguntaram o nome dos bichos à empregada atarefada em passar café.

Coruja - foi a resposta seca, desinteressada, como se se tratassem de um saco de açúcar.


(...)


Restou-me o consolo de ter sido o primeiro a identificá-las como realmente eram. Ou como eu as via, duvidando que a visão dos outros fosse mais correta, profunda ou corajosa.


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Logo caminhavam pela casa inteira, desvendando segredos. As crianças seguravam-nas, embalando-as como nenéns. Sem esperar, de repente, agente deparava com o olhar amarelo fixo duma -perturbando, interrogando, confundindo. A acusação muda fazia com que me investigasse ansioso, buscando erros. E punha-me em dia comigo mesmo, para me apresentar novamente a elas de banho tomado, unhas cortadas, rosto barbeado, cabelo penteado -na ilusão de que a limpeza externa arrancasse um aceno de aprovação.


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Admitia-as envergonhado, mas hesitava em mostrar-me, criminoso negando o crime até a evidência dos fatos. Observava os olhares desviados dos adultos, e desviava também o meu, cirandando com eles na mesma negação.


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Chamá-las de alguma coisa seria dar um passo no caminho de seu conhecimento, como se sutilmente as fosse amoldando à minha maneira de desejá-las. Finalmente achei. Eram nomes de criaturas estranhas, indecifráveis como elas, já perdidas no tempo, misteriosas até hoje. Rasputin e Cassandra. Calei a descoberta, ocultei o batizado, apropriando-me cada vez mais de sua natureza, embora inconscientemente soubesse da inutilidade de tudo.


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Desejei comunicá-las sua próxima libertação, mas a ineficiência de gestos e palavras isolou-me num mutismo para elas incompreensível. Éramos definitivamente incomunicáveis. Eu, gente; elas, bichos. Corujas, mesmo batizadas em segredo. Cassandra e Rasputin. Ofélia e Hamlet. Tutuca e Telecoteco. Qualquer nome não modificaria a sua natureza. Nunca. Corujas para sempre.


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Num começo de manhã ainda sem sol, igual a que as tinha trazido, Rasputin foi encontrado morto. O corpo pequeno e cinzento, já rígido, sobre os mosaicos frios da cozinha. Desviei os olhos sem dar nome ao sentimento que me invadia. Encolhida em seu canto, Cassandra diminuía cada vez mais. Olhos cerrados com força, eu tinha impressão que vezenquando seu corpo oscilava, talo de capim ao vento, quase quebrado.Até que morreu também. Digna e solitária, quem sabe virgem. Enterraram-na no fundo do quintal, uns jasmins jogados por cima da cova rasa, feita com as mãos.

Não fui ver a sepultura. Não sei se me assustava o mistério adensado ou para sempre desfeito.



Para ler na íntegra, procure no livro“Inventário do Ir-remediável”, de Caio Fernando Abreu, o conto “Corujas”, e leia todos os outros contos também.