“A crise dá a sensação de que algo está se movendo, quando nada se move.
A crise dá ao político uma allure de urgência, uma sensação de utilidade.
A crise estimula os senadores e deputados.
A crise dá boa consciência ao congressista, dá a impressão de
que ele está fazendo muito.
A crise gera uma espécie de metatrabalho, um tremelique que parece esforço.
A crise dá ao político a sensação de que sua preocupação é útil.
A crise permite rostos graves, frontes preocupadas, que sempre impressionam os leitores.
A crise cria um suspense, a vida fica mais excitante.
A crise é um thriller.
A crise estimula a inteligência.
A crise é assunto.
Todos escrevem sobre a crise, como se fosse uma musa, uma mulher.
A crise não é uma mulher.
Se bem que a crise é boa para
justificar broxadas: ‘Minha filha... desculpe... é a crise...’
A crise anseia por uma estética.
Por uma estética da crise.
A crise criou discursos, que se digladiam pelos louros do aceito.
A saber:
1) O discurso clamor à nação;
2) O apocalíptico clássico ou discreto-científico;
3) O apocalíptico barroco ou Sudene-tardio.
(...)
O discurso apocalíptico clássico é culto, mantém a calma acadêmica diante do caos e descreve nossa morte com minúcias sádicas.
É típico de discretos professores e altos sociólogos.
É puro de alma e prova com lógica as impossibilidades de nossa salvação.
Prevê o dia final com alegria científica.
Este discurso pode pedir impeachment ou golpe com distanciamento brechtiano.
É o inócuo com doutorado, o beco-sem-saída com PhD.
Já o apocalíptico barroco é mais para impressionar eleitor que para impressionar Campinas, mais sinfônico, saboroso como comida nordestina, faturando nossa desgraça com os mesmos adjetivos para conseguir um açude.
Nestes, a crise é boa para fazer lobby para descolar verbas.
A crise é boa para reeleição.
A crise é boa para 1994.
A crise é uma eucaristia.
A crise limpa o autor dos discursos, os artigos.
Todos são culpados, menos o orador, o ensaísta.
A crise tem esta serventia também: limpar pessoas.
A crise lava pessoas como as Bahamas lavam dinheiro.
A crise é boa para limpar prestígios. Corrupto vira reformador moral.
A crise é uma eucaristia.
A crise acostuma a população à impunidade e assim a conformiza, permitindo mais corrupção.
A impunidade é o marketing da impunidade.
A crise é boa para ex-presidentes que passam à História como bons governantes.
A crise dá um novo alento à esquerda, dando a ela a impressão de que velhas teses podem ser recauchutadas.
A crise dá meia-sola em Lênin.
A crise substituiu a boa consciência perdida pelas esquerdas, tão deprimidas com a queda da URSS.
A crise é a cocaína das esquerdas.
(...)
A crise é boa para a sociedade civil, já que ninguém sabe onde está a sociedade civil. Onde está a sociedade civil?
Vendo a Globo?
No shopping center?
No Fasano?
Na Europa?
A crise é boa para achar a sociedade civil.
A crise é boa para aumentar o contato com o absurdo, logo, com o mistério da vida. Neste sentido a crise é filosófica.
Aumenta a profundidade dos políticos.
Daí dizer-se: ‘É profunda a crise..’
A crise é boa para o messianismo.
Pode fazer surgir salvadores da pátria, assim devolvendo um sentido épico à nossa existência.
Pode restaurar utopias.
Assim, acabar com a ópera seca da pósmodernidade.
A crise é neoclássica, uma renascença.
A crise é democrática como a morte: ela poderá atingir a todos, com exceção dos políticos, claro, que ganham bem e podem ficar intocados pela adversidade.
Assim, a crise é equalitária, fraternal.
O caos ou o pântano
A crise é boa para nos levar a uma definição.
Por exemplo: quando começa o caos?
Já começou?
O que é o caos, onde é?
A crise será boa para matar esta curiosidade.
Temos um insano desejo de conhecer o caos.
A crise é generosa. Ela dá opções.
(...)
Tem gente que prefere o caos, seus traços duros, a tragédia a pino.
Já outros preferem o pântano, como os sapos.
Creio mesmo que a tendência brasileira preferirá o pântano, o brejo, o brejal das almas, o bosteiro, porque além de ter mais a ver com nosso regionalismo, com nosso folclore, é mais administrável.
O pântano dura séculos: é melhor.
Já o caos não combina tanto com nossa alma cordial.
O caos é um negócio muito radical, meio anglosaxão, meio eslavo.
Já o doce pântano é mais Brasil... sapos coaxando no Congresso, uma greve ali, uma matança de flagelados e invasores acolá, a sudanização do Nordeste (que aliás permitirá ótimas fotografias como as da África: confira Photos, Zoom etc.), com os negros
magérrimos, chiquérrimos, com grande dignidade na miséria.
Altos visuais proletários.
A crise é boa para a art direction, neste sentido.
(...)
O dia em que a crise for embora, o que faremos?
O que será de nós, sem assunto, sem tremor, relegados a tarefas menores como, digamos... trabalhar?
Teremos então um intenso tédio conjugal pela Pátria.”
“Os canibais estão na sala de jantar”, 1993.
Nenhum comentário:
Postar um comentário