quarta-feira, 11 de novembro de 2009

O cara pop

“A crise dá a sensação de que algo está se movendo, quando nada se move.

A crise dá ao político uma allure de urgência, uma sensação de utilidade.

A crise estimula os senadores e deputados.

A crise dá boa consciência ao congressista, dá a impressão de

que ele está fazendo muito.

A crise gera uma espécie de metatrabalho, um tremelique que parece esforço.

A crise dá ao político a sensação de que sua preocupação é útil.

A crise permite rostos graves, frontes preocupadas, que sempre impressionam os leitores.

A crise cria um suspense, a vida fica mais excitante.

A crise é um thriller.

A crise estimula a inteligência.

A crise é assunto.

Todos escrevem sobre a crise, como se fosse uma musa, uma mulher.

A crise não é uma mulher.

Se bem que a crise é boa para

justificar broxadas: ‘Minha filha... desculpe... é a crise...’

A crise anseia por uma estética.

Por uma estética da crise.

A crise criou discursos, que se digladiam pelos louros do aceito.

A saber:

1) O discurso clamor à nação;

2) O apocalíptico clássico ou discreto-científico;

3) O apocalíptico barroco ou Sudene-tardio.

(...)

O discurso apocalíptico clássico é culto, mantém a calma acadêmica diante do caos e descreve nossa morte com minúcias sádicas.

É típico de discretos professores e altos sociólogos.

É puro de alma e prova com lógica as impossibilidades de nossa salvação.

Prevê o dia final com alegria científica.

Este discurso pode pedir impeachment ou golpe com distanciamento brechtiano.

É o inócuo com doutorado, o beco-sem-saída com PhD.

Já o apocalíptico barroco é mais para impressionar eleitor que para impressionar Campinas, mais sinfônico, saboroso como comida nordestina, faturando nossa desgraça com os mesmos adjetivos para conseguir um açude.

Nestes, a crise é boa para fazer lobby para descolar verbas.

A crise é boa para reeleição.

A crise é boa para 1994.

A crise é uma eucaristia.

A crise limpa o autor dos discursos, os artigos.

Todos são culpados, menos o orador, o ensaísta.

A crise tem esta serventia também: limpar pessoas.

A crise lava pessoas como as Bahamas lavam dinheiro.

A crise é boa para limpar prestígios. Corrupto vira reformador moral.

A crise é uma eucaristia.

A crise acostuma a população à impunidade e assim a conformiza, permitindo mais corrupção.

A impunidade é o marketing da impunidade.

A crise é boa para ex-presidentes que passam à História como bons governantes.

A crise dá um novo alento à esquerda, dando a ela a impressão de que velhas teses podem ser recauchutadas.

A crise dá meia-sola em Lênin.

A crise substituiu a boa consciência perdida pelas esquerdas, tão deprimidas com a queda da URSS.

A crise é a cocaína das esquerdas.

(...)

A crise é boa para a sociedade civil, já que ninguém sabe onde está a sociedade civil. Onde está a sociedade civil?

Vendo a Globo?

No shopping center?

No Fasano?

Na Europa?

A crise é boa para achar a sociedade civil.

A crise é boa para aumentar o contato com o absurdo, logo, com o mistério da vida. Neste sentido a crise é filosófica.

Aumenta a profundidade dos políticos.

Daí dizer-se: ‘É profunda a crise..’

A crise é boa para o messianismo.

Pode fazer surgir salvadores da pátria, assim devolvendo um sentido épico à nossa existência.

Pode restaurar utopias.

Assim, acabar com a ópera seca da pósmodernidade.

A crise é neoclássica, uma renascença.

A crise é democrática como a morte: ela poderá atingir a todos, com exceção dos políticos, claro, que ganham bem e podem ficar intocados pela adversidade.

Assim, a crise é equalitária, fraternal.

O caos ou o pântano

A crise é boa para nos levar a uma definição.

Por exemplo: quando começa o caos?

Já começou?

O que é o caos, onde é?

A crise será boa para matar esta curiosidade.

Temos um insano desejo de conhecer o caos.

A crise é generosa. Ela dá opções.

(...)

Tem gente que prefere o caos, seus traços duros, a tragédia a pino.

Já outros preferem o pântano, como os sapos.

Creio mesmo que a tendência brasileira preferirá o pântano, o brejo, o brejal das almas, o bosteiro, porque além de ter mais a ver com nosso regionalismo, com nosso folclore, é mais administrável.

O pântano dura séculos: é melhor.

Já o caos não combina tanto com nossa alma cordial.

O caos é um negócio muito radical, meio anglosaxão, meio eslavo.

Já o doce pântano é mais Brasil... sapos coaxando no Congresso, uma greve ali, uma matança de flagelados e invasores acolá, a sudanização do Nordeste (que aliás permitirá ótimas fotografias como as da África: confira Photos, Zoom etc.), com os negros

magérrimos, chiquérrimos, com grande dignidade na miséria.

Altos visuais proletários.

A crise é boa para a art direction, neste sentido.

(...)

O dia em que a crise for embora, o que faremos?

O que será de nós, sem assunto, sem tremor, relegados a tarefas menores como, digamos... trabalhar?

Teremos então um intenso tédio conjugal pela Pátria.”


“Os canibais estão na sala de jantar”, 1993.



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