quarta-feira, 11 de novembro de 2009

O Ovo


“Um domingo que saí a caminhar, me lembrei da montanha.

Subi até lá e de novo vi a parede.

Parecia mais clara, mais perto.

Voltei pra casa e disse mãe tem uma parede branca além do horizonte.

Eu já tinha uns vinte e dois anos, mas ela chamou meu pai e mandou eu repetir o que tinha dito.

Eu repeti e ele me deu uma bofetada na cara.

A mãe começou a chorar e pediu pra eu nunca contar a ninguém que tinha visto a parede.

Mas eu estava uma fera.

Chamei meu pai de filho da puta, disse que ele só me batia na cara porque era um velho e era meu pai e sabia que eu não era filho da puta ao ponto de bater num velho que ainda por cima era meu pai.

Arrumei minhas coisas e saí de casa.

Fui pra uma pensão.

(...)

Eu ia à montanha todos os domingos, e a parede lá estava, cada vez mais próxima.

Eu não queria contar a ninguém, iam pensar que eu era louco.

Então comecei a ler uns livros pra ver se a tal parede era uma coisa natural.

Mas nos livros de geografia não havia paredes brancas.

Falava de terras, mares.

Os de astronomia de estrelas, cometas.

De paredes, nada.

Os outros livros que eu lia também não.

O máximo de estranheza que contava era dum sujeito que se transformou em barata -ele devia ser soldado da brigada.

Um dia eu comecei a andar em direção à parede.

Ela estava muito longe.

Caminhei quase um dia inteiro, até que ficou noite e tive que pedir carona a um menino carroceiro.

Quando cheguei na pensão procurei o velho fresco, que já foi puxando a carteira do bolso pra me dar mais dinheiro.

Mas eu disse que não era nada daquilo, e contei da parede.

Aí o velho fresco começou a gritar até que veio todo o mundo da pensão.

Ele apontava pra mim com ar de pavor e berrava ele viu, ele viu!

Ninguém perguntou o que eu tinha visto.

Só mandaram pegar as minhas coisas e dar o fora antes que chamassem a polícia.

Daí eu coloquei os troços na mala e fui saindo.

Quando cheguei à praça, disposto a passar a noite num banco, olhei para o horizonte e vi a parede.

Estava muito perto, era muito branca.

Era domingo, a praça cheia de gente passeando, os rapazes tomando cerveja no quiosque, as mocinhas caminhando de braços dados.

Subi num banco, chamei todo o mundo para mostrar a parede.

Ficou cheio de gente em volta de mim, um silêncio desses horríveis, havia uma porção de caras, eu olhava uma por uma buscando um sinal qualquer de reconhecimento, mas os olhos de todos estavam enormes, as bocas pareciam costuradas, as sobrancelhas unidas.

De repente uns me seguraram enquanto os outros iam chamar os três.

Os três vieram.

De branco, da mesma cor da parede: uma mulher com um chifre no meio da testa, um homem com três olhos e outro com vários braços, como um polvo.

O de vários braços me segurou pelas costas enquanto o de três olhos ia abrindo caminho e a mulher me empurrava com o chifre.

As gentes falavam palavrões e me cuspiam enquanto eu ia saindo.

Eu caminhava devagar, via a parede atrás da igreja, dos campos, olhei para cima e também lá estava a parede, escondendo as estrelas.

Antes de eles me jogarem no caminhão, olhei para trás e vi minha mãe e meu pai muito velhinhos, de braços dados.

Pedi pra eles me salvarem, mas eles sacudiram com ódio a cabeça, o meu pai me mostrou o punho fechado e minha mãe escarrou no meu rosto.

Os três me jogaram dentro do caminhão, a mulher de chifre dirigia, os dois outros me seguravam.

Então me trouxeram para cá.

Todos os dias a mulher de chifre me traz as refeições, ao mesmo tempo em que o de vários braços me segura, o de três olhos coloca uns fios na minha cabeça e eu sinto uma coisa estranha, um tremor em todo o corpo, depois caio num sono pesado e só acordo à tarde.

Saio na janela espio.

E vejo a parede.

Cada dia mais próxima.

Eu queria contar toda a minha vida para se alguém lesse visse que não sou louco, que sempre foi tudo normal comigo, que eu fiz e disse as coisas que todo o mundo faz e diz...

(...)

Que eu via a parede e que todos os outros também viam, tenho certeza, só que eles não queriam ver, não sei por que, e prendiam quem via.

Ontem chamei o de três olhos, que parece o mais simpático, mostrei a parede, perguntei se ele não via.

Falei devagar, sem me exaltar nem nada.

Aí ele ficou quieto e baixou a cabeça, acho que sentiu vergonha de fazer o que está fazendo, porque ele também vê.

E ela está cada vez mais perto.

Só ontem cheguei à conclusão de que se trata de um enorme ovo.

Que estamos todos dentro dele.

Mas é um ovo que diminui cada vez mais, cada vez mais, nós vamos ser todos esmagados por ele.

Não sei por que os homens não se armam de paus e pedras para furar a parede.

Seria muito fácil, a casca de um ovo é tão frágil.

Ele já está meio azulado de tão próximo, não se vê mais as estrelas, nem a lua, nem o sol.

A escuridão em que passamos o dia todo é meio azulada também.

O silêncio é imenso, como se houvesse um grande vácuo aqui dentro.

A cada dia o movimento do ovo fica mais rápido.

Ontem, já havia ultrapassado o muro, estava a uns cem metros da minha janela. Amanhã vai estar do lado da janela, talvez já esteja, não ouço mais os passos da mulher de chifre caminhando pelos corredores com as chaves penduradas na cintura e -agora lembro -o de três olhos e o de muitos braços não me deram choques hoje.

Acho que eles estão fora do ovo, e só eu dentro.

Talvez cada um tenha o seu próprio ovo.

E este é o meu.

Olho para o meu corpo.

Será que ele cabe dentro de um ovo?

Será que não vai doer?

Eu não sei.

Tenho tanto medo.

Estou esperando, cansei de escrever, a vela está quase apagando.

Vou deitar.

Estou ouvindo o rumor do ovo se aproximando cada vez mais.

É um barulho leve, leve.

Quase como um suspiro de gente cansada.

Está muito perto.

Tão perto que ninguém vai me ouvir se eu gritar.”


Caio Fernando Abreu, em Inventário do Ir-remediável.




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