sábado, 31 de julho de 2010

As armadilhas do tempo.




Sentada de cócoras na cama, ela olhou-o longamente, percorreu seu corpo nú da cabeça aos pés, como se estudasse as sardas e os poros, e disse:
- A única coisa que eu mudaria em você é o endereço.
E a partir de então viveram juntos, foram juntos, se divertiam brincando pelo jornal no café da manhã e cozinhavam inventando e dormiam feito um nó.
Agora esse homem, mutilado dela, quer recordá-la como era. Como era qualquer uma das que ela era, cada uma com sua própria graça e seu próprio poderio, porque aquela mulher tinha o espantoso costume de nascer com frequência. 
Mas não. A memória se nega. A memória não quer devolver a ele nada além desse corpo gelado onde ela não estava, esse corpo vazio das muitas mulheres que ela foi.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Porões da noite



Porque aquela mulher não se calava nunca, porque se queixava sempre, porque para ela não havia uma bobagem que não fosse um problema, porque estava farto de trabalhar feito burro de carga e ainda por cima aguentar a sua parentela, porque na cama tinha que rogar como um mendigo, porque ela andou com outro e se fazia de santa, porque ela doía nele como nunca ninguém havia doído e porque sem ela não conseguia viver mas com ela também não, ele se viu obrigado a torcer-lhe o cangote, como se fosse uma galinha.
Porque esse homem não escutava nunca, porque nunca ligava para ela, porque para ele não havia um problema que não fosse uma bobagem, porque estava farta de trabalhar feito mula e ainda por cima aguentar aquele patife e toda a sua parentela, porque na cama tinha que obedecer como uma puta, porque ele andou com outra e contava a todo mundo, porque ele doía nela como jamais ninguém havia doido e porque sem ele não conseguia viver mas com ele também não, ela se viu obrigada a empurrá-lo do décimo andar, como se fosse um pacote.
No final daquela noite, tomaram juntos o café da manhã. Como todos os dias, a rádio transmitia música e notícias. Nenhuma notícia chamou a sua atenção. Os notíciários não cuidam de sonhos.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Invenção do coração de mulher.



Nem sei, aliás, se cheguei a estar apaixonado por Norma Propp. Afinal, o que é que significa isso? Quem não sabe, no fundo, amor é invenção do coração da mulher, que ela tenta vender para o primeiro que aparecer e o seguinte, e o seguinte, e o seguinte, e assim por diante até aquela cena de sangue num bar da Avenida São João, que só vem para provar, de uma vez por todas, que alguém e ninguém não são iguais, e dali saem para lamber o sangue de suas patas, meditando a próxima vingança. No fundo, toda diferença é insuportável. O ímpar do professor Propp, a gente quer tudo par.

sábado, 24 de julho de 2010

É questão de encontrar um novo dragão



Resta esta história que conto, você ainda está me ouvindo? Anotações soltas sobre a mesa, cinzeiros cheios, copos vazios e este guardanapo de papel onde anotei frases aparentemente sábias sobre o amor e Deus, com uma frase que tenho medo de decifrar e talvez, afinal, diga apenas qualquer coisa simples feito: nada disso existe.


Nada, nada disso existe.


Então quase vomito e choro e sangro quando penso assim. Mas respiro fundo, esfrego as palmas das mãos, gero energia em mim. Para manter-me vivo, saio à procura de ilusões como o cheiro das ervas ou reflexos esverdeados de escamas pelo apartamento e, ao encontrá-los, mesmo apenas na mente, tornar-me então outra vez capaz de afirmar, como num vício inofensivo: tenho um dragão que mora comigo. E, desse jeito, começar uma nova história que, desta vez sim, seria totalmente verdadeira, mesmo sendo completamente mentira. Fico cansado do amor que sinto, e num enorme esforço que aos poucos se transforma numa espécie de modesta alegria, tarde da noite, sozinho neste apartamento no meio de uma cidade escassa de dragões, repito e repito este meu confuso aprendizado para a criança-eu-mesmo sentada aflita e com frio nos joelhos do sereno velho-eu-mesmo...

sexta-feira, 23 de julho de 2010

A sobrevivência


a loucura, quem sabe, caíra como chuva

ou como uma bigorna em cima dos sonhos empilhados

perturbando o sono como cantilena de ladainhas

suspiros de lástimas em meio à canções desencontradas

e ela arrancou cabelos

enumerou pratos

copos em cacos agarrados aos dedos

treinando a vista 

para ver até onde tudo sangrava

e ela ouviu música

cerrou cortinas

desejou massacres

jogou a solidão dentro da taça


e bebeu

e efervesceu o grito como antiácido intragável

atirou contra a noite de extinções e extermínios

a calma, quem sabe, tirou férias para morrer

ou como uma canção engasgada

mão no rosto na hora da foto batida 

na despedida no meio da noite 

em meio a acenos e mais acenos de adeus

treinando para o nunca

e ela amassou cigarros

girou no delírio de sobrevivências tardias

e sonhou




li aqui ó: http://pontispopuli.blogspot.com/


quinta-feira, 22 de julho de 2010

Meu rato.





A cada minuto que passava, mais aumentava meu medo, e eu ficava cada vez mais feliz de poder gritar “terra à vista”, diante daquele rato que me roía as entranhas, pólo ártico na boca do estômago, meu velho e querido amigo, enfim, um amigo, meu verdadeiro amigo, o pavor. A gente se conhecia desde a infância, o medo cresceu comigo.


quarta-feira, 21 de julho de 2010

Bobagem?

De repente, tudo ficou pálido como se tivesse medo. De repente, tudo ficou corado, como se tivesse vergonha. O ar ficou corado.
...

E como TUDO tinha mudado me dei ao direito de também. Meu rosto, de senhorial mudou para o desespero, de raivoso passou para o desânimo, em meu rosto, meu rosto mudou, rapidamente, flashes de slide projetados na cara de uma estátuapor uma máquina desgovernada.
...

Para melhor, para pior, pouco importa, essas palavras, bem e mal, já não faziam diferença, não tinham mais nada a fazer naquele jogo, entende? Eu vivia uma circunstância absoluta, podia sentir os sintomas. Bem que meu analista tinha me prevenido...



A gente arrasta o rabo do dia-a-dia, os dias na esperança de um só dia, um momento máximo, o campeonato nacional, a decisão, a final. Esta era a final. Daqui para diante, só as florestas, os desertos, os pantanaise os céus da sabedoria. Mas foi triste que varei a sala, me debatendo entre as ondas de com licença e desculpe, perdão e tenha a bondade, até a mesa do ponche. Jamais vou poder dizer se a tristeza, que me encheu como o vinho enche um copo, vinha da ausência de Norma ou de constatar amargurado, e me resignar com a evidência gritante de que aquilo fosse o que era, a queda do império, a passagem do
cometa Halley, o primeiro lugar na lista dos sucessos, uma bobagem dessas qualquer.
Já era ciúme o que eu sentia com a desaparição de Norma?
E o que fazer com a lição do professor Propp, mo não existe? Medo. Medo, sim. Quando senti medo, quase pude tocar com as mãos suas imensas distâncias, abismos intransponíveis, silêncios insuportáveis, tudo aquilo que a gente sente diante do tigre, tudo aquilo que sobe e desce na espinha quando você pergunta:
— É grave, doutor?

terça-feira, 20 de julho de 2010

Caio, sempre caio.



“nunca antes uma coisa nem ninguém me doeu tanto como eu mesmo me dôo agora mas ao menos nesse agora eu quero ser como eu sou e como nunca fui e nunca seria se continuasse me entende eu não conseguiria não você não me entendeu nem entende nem entenderia você nem sequer soube sabe saberá”

História clínica



Informou que sofria de taquicardia toda vez que o via, mesmo que fosse de longe.
Declarou que suas glândulas salivares secavam quando ele a olhava, mesmo que fosse por acaso.
Admitiu uma hipersecreção das glândulas sudoríparas toda vez que ele falava com ela, mesmo que fosse apenas por cortesia.
Reconheceu que padecia de graves desequilibrios de pressão sanguínea quando ele a roçava, mesmo que fosse por engano.
Confessou que por ele padecia de tonturas, que sua visão se enevoava, que seus joelhos afrouxavam. Que nos dias não conseguia parar de dizer bobagens e que nas noites não conseguia dormir.
- Foi há muito tempo, doutor - disse. - Eu nunca mais senti nada disso.
O médico ergueu as sobrancelhas.
- Nunca mais sentiu nada disso?
E diagnosticou:
-Seu caso é grave.