quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Comporta-te assim, meu Lucílio, reivindica o teu direito sobre ti mesmo e o tempo que até hoje foi levado embora, foi roubado ou fugiu, recolhe e aproveita esse tempo. Convence-te de que é assim como te escrevo: certos momentos nos são tomados, outros nos são furtados e outros ainda se perdem no vento. Mas a coisa mais lamentável é perder tempo por negligência. Se pensares bem, passamos grande parte da vida agindo mal, a maior parte sem fazer nada, ou fazendo algo diferente do que deveria fazer.

Podes me indicar alguém que dê valor ao seu tempo, valorize o seu dia, entenda que se morre diariamente? Nisso, pois, falhamos: pensamos que a morte é coisa do futuro, mas parte dela já é coisa do passado. Qualquer tempo que já passou pertence à morte.

Então, caro Lucílio, procura fazer aquilo que me escreves: aproveita todas as horas; serás menos dependente do amanhã se te lançares ao presente. Enquanto adiamos, a vida se vai.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Eu não sou poeta, mas...

Dê razão sempre a si mesmo e a seu sentimento, diante de qualquer discussão, debate e introdução; se o senhor estiver errado, o crescimento natural de sua vida íntima o levará lentamente, com o tempo, a outros conhecimentos. Permita a suas avaliações seguir o desenvolvimento próprio, tranquilo e sem perturbação, algo que, como todo avanço, precisa vir de dentro e não pode ser forçado nem apressado por nada. Tudo está em deixar amadurecer e então dar à luz. Deixar cada impressão, cada semente de um sentimento germinar por completo dentro de si, na escuridão do indizível e do inconsciente, em um ponto inalcançável para o próprio entendimento, e esperar com profunda humildade e paciência a hora do nascimento de uma nova clareza: só isso se chama viver artisticamente, tanto na compreensão quanto na criação.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

O mundo ia muito bem até nascer o por quê.

No começo, é difícil. Sem por quê, viver, arrastar esses dias, um atrás do outro, é subir uma escada sem corrimão, entrar pelado no mar, andar no mato de olhos fechados, dormir ao relento e sem cobertas. Mas, enfim, a gente acaba se acostumando a qualquer coisa. Me acostumei a viver sem perguntar por quê. E a só freqüentar as questões periféricas, como?, quando?, onde?

domingo, 1 de agosto de 2010

O pai


Vera faltou na escola. Ficou o dia inteiro trancada em casa. Ao anoitecer, escreveu uma carta ao pai. O pai de Vera estava muito doente, no hospital. Ela escreveu:

- Peço que você goste de você, que se cuide e se proteja, que se mime, que se sinta, que se ame, que se desfrute. Digo que gosto de você, cuido de você, protejo você, mimo você, sinto você, amo você, desfruto você.


Héctor Carnevale durou mais alguns dias. Depois, com a carta de sua filha debaixo do travesseiro, foi-se embora no sonho.

Mapa do tempo (ou um trecho dele)



Faz uns trezentos mil anos, a mulher e o homem se disseram as primeiras palavras, e acharam que poderiam se entender. E assim estamos até hoje: querendo ser dois, mortos de medo, mortos de frio, buscando palavras.

Se houve, prove.

De noite, me perguntou onde eu queria dormir. Com você, é claro, eu respondi. É por isso que eu adoro você, ela falou. Mas faz tua cama aí nesse canto, eu durmo aqui no sofá mesmo, legal pra você?
— Norma, que é que está acontecendo? Que história é essa?Vamos conversar um pouco. Onde é que foi parar aquilo tudo que havia?
— Tudo aquilo, o quê?
— Ora, você sabe, não se faça de boba.
— Você deve estar louco. Nunca houve nada entre nós.
— Essa não, Norma. Invente outra.
— Se houve, prove.
Eu não podia provar nada. A única evidência que eu tinha de que TINHA HAVIDO ALGUMA COISA ENTRE NÓS, esse nó no peito, essa sensação de que tinham colocado uma rolha no gargalo do meu coração, e essa vontade de apertar seu pescoço devagarinho até fazer o cérebro sair pelas orelhas que nem bosta num moedor de carne. Ou bater nela com um maço de notas de mil, até ouvir ela gritar Bernardo. Uma navalha, por favor.

sábado, 31 de julho de 2010

As armadilhas do tempo.




Sentada de cócoras na cama, ela olhou-o longamente, percorreu seu corpo nú da cabeça aos pés, como se estudasse as sardas e os poros, e disse:
- A única coisa que eu mudaria em você é o endereço.
E a partir de então viveram juntos, foram juntos, se divertiam brincando pelo jornal no café da manhã e cozinhavam inventando e dormiam feito um nó.
Agora esse homem, mutilado dela, quer recordá-la como era. Como era qualquer uma das que ela era, cada uma com sua própria graça e seu próprio poderio, porque aquela mulher tinha o espantoso costume de nascer com frequência. 
Mas não. A memória se nega. A memória não quer devolver a ele nada além desse corpo gelado onde ela não estava, esse corpo vazio das muitas mulheres que ela foi.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Porões da noite



Porque aquela mulher não se calava nunca, porque se queixava sempre, porque para ela não havia uma bobagem que não fosse um problema, porque estava farto de trabalhar feito burro de carga e ainda por cima aguentar a sua parentela, porque na cama tinha que rogar como um mendigo, porque ela andou com outro e se fazia de santa, porque ela doía nele como nunca ninguém havia doído e porque sem ela não conseguia viver mas com ela também não, ele se viu obrigado a torcer-lhe o cangote, como se fosse uma galinha.
Porque esse homem não escutava nunca, porque nunca ligava para ela, porque para ele não havia um problema que não fosse uma bobagem, porque estava farta de trabalhar feito mula e ainda por cima aguentar aquele patife e toda a sua parentela, porque na cama tinha que obedecer como uma puta, porque ele andou com outra e contava a todo mundo, porque ele doía nela como jamais ninguém havia doido e porque sem ele não conseguia viver mas com ele também não, ela se viu obrigada a empurrá-lo do décimo andar, como se fosse um pacote.
No final daquela noite, tomaram juntos o café da manhã. Como todos os dias, a rádio transmitia música e notícias. Nenhuma notícia chamou a sua atenção. Os notíciários não cuidam de sonhos.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Invenção do coração de mulher.



Nem sei, aliás, se cheguei a estar apaixonado por Norma Propp. Afinal, o que é que significa isso? Quem não sabe, no fundo, amor é invenção do coração da mulher, que ela tenta vender para o primeiro que aparecer e o seguinte, e o seguinte, e o seguinte, e assim por diante até aquela cena de sangue num bar da Avenida São João, que só vem para provar, de uma vez por todas, que alguém e ninguém não são iguais, e dali saem para lamber o sangue de suas patas, meditando a próxima vingança. No fundo, toda diferença é insuportável. O ímpar do professor Propp, a gente quer tudo par.

sábado, 24 de julho de 2010

É questão de encontrar um novo dragão



Resta esta história que conto, você ainda está me ouvindo? Anotações soltas sobre a mesa, cinzeiros cheios, copos vazios e este guardanapo de papel onde anotei frases aparentemente sábias sobre o amor e Deus, com uma frase que tenho medo de decifrar e talvez, afinal, diga apenas qualquer coisa simples feito: nada disso existe.


Nada, nada disso existe.


Então quase vomito e choro e sangro quando penso assim. Mas respiro fundo, esfrego as palmas das mãos, gero energia em mim. Para manter-me vivo, saio à procura de ilusões como o cheiro das ervas ou reflexos esverdeados de escamas pelo apartamento e, ao encontrá-los, mesmo apenas na mente, tornar-me então outra vez capaz de afirmar, como num vício inofensivo: tenho um dragão que mora comigo. E, desse jeito, começar uma nova história que, desta vez sim, seria totalmente verdadeira, mesmo sendo completamente mentira. Fico cansado do amor que sinto, e num enorme esforço que aos poucos se transforma numa espécie de modesta alegria, tarde da noite, sozinho neste apartamento no meio de uma cidade escassa de dragões, repito e repito este meu confuso aprendizado para a criança-eu-mesmo sentada aflita e com frio nos joelhos do sereno velho-eu-mesmo...

sexta-feira, 23 de julho de 2010

A sobrevivência


a loucura, quem sabe, caíra como chuva

ou como uma bigorna em cima dos sonhos empilhados

perturbando o sono como cantilena de ladainhas

suspiros de lástimas em meio à canções desencontradas

e ela arrancou cabelos

enumerou pratos

copos em cacos agarrados aos dedos

treinando a vista 

para ver até onde tudo sangrava

e ela ouviu música

cerrou cortinas

desejou massacres

jogou a solidão dentro da taça


e bebeu

e efervesceu o grito como antiácido intragável

atirou contra a noite de extinções e extermínios

a calma, quem sabe, tirou férias para morrer

ou como uma canção engasgada

mão no rosto na hora da foto batida 

na despedida no meio da noite 

em meio a acenos e mais acenos de adeus

treinando para o nunca

e ela amassou cigarros

girou no delírio de sobrevivências tardias

e sonhou




li aqui ó: http://pontispopuli.blogspot.com/


quinta-feira, 22 de julho de 2010

Meu rato.





A cada minuto que passava, mais aumentava meu medo, e eu ficava cada vez mais feliz de poder gritar “terra à vista”, diante daquele rato que me roía as entranhas, pólo ártico na boca do estômago, meu velho e querido amigo, enfim, um amigo, meu verdadeiro amigo, o pavor. A gente se conhecia desde a infância, o medo cresceu comigo.


quarta-feira, 21 de julho de 2010

Bobagem?

De repente, tudo ficou pálido como se tivesse medo. De repente, tudo ficou corado, como se tivesse vergonha. O ar ficou corado.
...

E como TUDO tinha mudado me dei ao direito de também. Meu rosto, de senhorial mudou para o desespero, de raivoso passou para o desânimo, em meu rosto, meu rosto mudou, rapidamente, flashes de slide projetados na cara de uma estátuapor uma máquina desgovernada.
...

Para melhor, para pior, pouco importa, essas palavras, bem e mal, já não faziam diferença, não tinham mais nada a fazer naquele jogo, entende? Eu vivia uma circunstância absoluta, podia sentir os sintomas. Bem que meu analista tinha me prevenido...



A gente arrasta o rabo do dia-a-dia, os dias na esperança de um só dia, um momento máximo, o campeonato nacional, a decisão, a final. Esta era a final. Daqui para diante, só as florestas, os desertos, os pantanaise os céus da sabedoria. Mas foi triste que varei a sala, me debatendo entre as ondas de com licença e desculpe, perdão e tenha a bondade, até a mesa do ponche. Jamais vou poder dizer se a tristeza, que me encheu como o vinho enche um copo, vinha da ausência de Norma ou de constatar amargurado, e me resignar com a evidência gritante de que aquilo fosse o que era, a queda do império, a passagem do
cometa Halley, o primeiro lugar na lista dos sucessos, uma bobagem dessas qualquer.
Já era ciúme o que eu sentia com a desaparição de Norma?
E o que fazer com a lição do professor Propp, mo não existe? Medo. Medo, sim. Quando senti medo, quase pude tocar com as mãos suas imensas distâncias, abismos intransponíveis, silêncios insuportáveis, tudo aquilo que a gente sente diante do tigre, tudo aquilo que sobe e desce na espinha quando você pergunta:
— É grave, doutor?

terça-feira, 20 de julho de 2010

Caio, sempre caio.



“nunca antes uma coisa nem ninguém me doeu tanto como eu mesmo me dôo agora mas ao menos nesse agora eu quero ser como eu sou e como nunca fui e nunca seria se continuasse me entende eu não conseguiria não você não me entendeu nem entende nem entenderia você nem sequer soube sabe saberá”

História clínica



Informou que sofria de taquicardia toda vez que o via, mesmo que fosse de longe.
Declarou que suas glândulas salivares secavam quando ele a olhava, mesmo que fosse por acaso.
Admitiu uma hipersecreção das glândulas sudoríparas toda vez que ele falava com ela, mesmo que fosse apenas por cortesia.
Reconheceu que padecia de graves desequilibrios de pressão sanguínea quando ele a roçava, mesmo que fosse por engano.
Confessou que por ele padecia de tonturas, que sua visão se enevoava, que seus joelhos afrouxavam. Que nos dias não conseguia parar de dizer bobagens e que nas noites não conseguia dormir.
- Foi há muito tempo, doutor - disse. - Eu nunca mais senti nada disso.
O médico ergueu as sobrancelhas.
- Nunca mais sentiu nada disso?
E diagnosticou:
-Seu caso é grave.

terça-feira, 29 de junho de 2010

A porta não abre


“...eu ia indo e pulando as poças d’água com as pernas geladas.... e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era..... eu reaprendia e inventava sempre, sempre em direção a ele, para chegar inteiro, os pedaços de mim todos misturados que ele disporia sem pressa, como quem brinca com um quebra-cabeça para formar que castelo, que bosque, que verme ou deus, eu não sabia, mas ia indo pela chuva porque esse era meu único sentido, meu único destino: bater naquela porta escura onde eu batia agora. E bati, e bati outra vez, e tornei a bater, e continuei batendo sem me importar que as pessoas na rua parassem para olhar, eu quis chamá-lo, mas tinha esquecido seu nome, se é que alguma vez o soube, se é que ele o teve um dia, talvez eu tivesse febre, tudo ficara muito confuso, idéias misturadas, tremores, água de chuva e lama e conhaque no meu corpo sujo gasto exausto batendo feito louco naquela porta que não abria, era tudo um engano, eu continuava batendo e continuava chovendo sem parar, mas eu não ia mais indo por dentro da chuva, pelo meio da cidade, eu só estava parado naquela porta fazia muito tempo, depois do ponto, tão escuro agora que eu não conseguiria nunca mais encontrar o caminho de volta, nem tentar outra coisa, outra ação, outro gesto além de continuar batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo”

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Ouvi, gostei, guardei: skank

Se você olhar um pouco ao seu redor
Vai poder notar que a noite já caiu
Se você voltar pra casa e não achar ninguém
Vai notar que na cidade falta alguém

Se você ligar o rádio
Todas as canções irão dizer: Goodbye, so long, my love

Se você ligar o rádio
Todas elas juntas vão dizer: é tarde

Se você perdeu agora a ilusão
De que os fatos eram fios em suas mãos
Vai querer tirar do armário o velho violão
Vai notar que ainda falta uma canção

Se você ligar o rádio
Todas as canções irão dizer: Goodbye, so long, my love

Você vai deixar na lista
Das tarefas de amanhã: chorar mais tarde

E quando o sol da manhã bater na porta
E quando nada lá fora agora importa
Tudo bem, é tarde

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Muito bem.


Sim, eu estou bem. Mudei um pouco, depois que você me deixou, mas estou bem. Antes eu não sabia que as pessoas fingiam sentir carinho, agora eu sei. Daí descobri: meu erro foi não saber fingir. Desde criança fui sincera, mas com você fui mais. Justo quem menos merecia. Passei a dormir na cama em que dormia na infância, pra me sentir protegida da incredulidade. Preciso de algumas ilusões de volta. Desde que você me deixou, tenho medo. Medo de acreditar, medo de confiar, medo dos elogios, medo de me aproximar, me encantar e depois perder. Mas estou bem, afinal, se era tudo mentira, nunca existiu... E se nunca existiu, eu nunca tive... E se eu nunca tive, posso viver muito bem sem, pois eu vivia muito bem antes disso...  Por enquanto estou só bem, mas em breve estarei muito bem. Nem vou me lembrar que um dia uma mentira pareceu existir, de um modo encantador, e de repente se desfez. Só vou me lembrar da mentira que você é.


terça-feira, 22 de junho de 2010

A uva e o vinho.

Um homem dos vinhedos falou, em agonia, junto ao ouvido de Marcela. Antes de morrer, revelou a ela o segredo:
- A uva - susurrou- é feita de vinho.
Marcela Péres Silva me contou isso, e eu pensei: se a uva é feita de vinho, talvez a gente seja as palavras que contam o que a gente é.

sábado, 12 de junho de 2010

Nothing special, baby!

Mas, eu quero dizer, e ela me corta mansa, claro que você não tem culpa, coração, caímos exatamente na mesma ratoeira, a única diferença é que você pensa que pode escapar, e eu quero chafurdar na dor deste ferro enfiado fundo na minha garganta seca que só umedece com vodca, me passa o cigarro, não, não estou desesperada, não mais do que sempre estive, nothing special, baby, não estou louca nem bêbada, estou é lúcida pra caralho e sei claramente que não tenho nenhuma saída, ah não se preocupe, meu bem, depois que você sair tomo banho frio, leite quente com mel de eucalipto, gin-seng e lexotan, depois deito, depois durmo, depois acordo e passo uma semana a banchá e arroz integral, absolutamente santa, absolutamente pura, absolutamente limpa, depois tomo outro porre.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Boa pergunta.





  O que é que se consegue quando se fica feliz?, sua voz era uma seta clara e fina. A professora olhou para Joana,
  Repita a pergunta...?
Silêncio. A professora sorriu arrumando os li­vros.
  Pergunte de novo, Joana, eu é que não ouvi.
  Queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois? — repetiu a menina com obstinação.
A mulher encarava-a surpresa.
  Que idéia! Acho que não sei o que você quer dizer, que idéia! Faça a mesma pergunta com outras palavras...
  Ser feliz é para se conseguir o quê?
A professora enrubesceu — nunca se sabia di­zer por que ela avermelhava. Notou toda a turma, mandou-a dispersar para o recreio.
O servente veio chamar a menina para o gabi­nete. A professora lá se achava:
  Sente-se... Brincou muito?
  Um pouco...
  Que é que você vai ser quando for grande?
  Não sei.
  Bem. Olhe, eu tive também uma idéia — corou.
  Pegue num pedaço de papel, escreva essa pergunta que você me fez hoje e guarde-a durante muito tempo. Quando você for grande leia-a de novo. — Olhou-a. — Quem sabe? Talvez um dia você mesma possa respondê-la de algum modo... — Perdeu o ar sério, corou. — Ou talvez isso não tenha importância e pelo menos você se divertirá com...
  Não.
  Não o quê? — perguntou surpresa a pro­fessora.
  Não gosto de me divertir, disse Joana com orgulho.
A professora ficou novamente rosada:
  Bem, vá brincar.
Quando Joana estava à porta em dois pulos, a professora chamou-a de novo, dessa vez corada até o pescoço, os olhos baixos, remexendo papéis sobre a mesa:
— Você não achou esquisito... engraçado eu mandar você escrever a pergunta para guardar?
  Não, disse. Voltou para o pátio.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Estou


Estou tonto,
Tonto de tanto dormir ou de tanto pensar,
Ou de ambas as coisas.
O que sei é que estou tonto
E não sei bem se me devo levantar da cadeira
Ou como me levantar dela.
Fiquemos nisto: estou tonto.
Afinal
Que vida fiz eu da vida?
Nada.
Tudo interstícios,
Tudo aproximações,
Tudo função do irregular e do absurdo,
Tudo nada.
É por isso que estou tonto ...
Agora
Todas as manhãs me levanto
Tonto ... Sim, verdadeiramente tonto...
Sem saber em mim e meu nome,
Sem saber onde estou,
Sem saber o que fui,
Sem saber nada.
Mas se isto é assim, é assim.
Deixo-me estar na cadeira,
Estou tonto.
Bem, estou tonto.
Fico sentado
E tonto,
Sim, tonto,
Tonto...
Tonto. 

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Medo

"Se meu medo não fosse tão grande, eu me consolaria com o fato de que não é impossível ver tudo de outro modo e, ainda assim, viver. Mas tenho medo, tenho um medo indizível dessa modificação. Nem mesmo cheguei a me habituar a este mundo que me parece bom. Que devo fazer em outro mundo? Eu gostaria muito de ficar entre os significados que se tornaram queridos..."

os cadernos de Malte Laurids Brigge

domingo, 2 de maio de 2010

Queda, Morte.

Não queria, desde o começo eu não quis. Desde que senti que ia cair e me quebrar inteiro na queda para depois restar incompleto, destruído talvez, as mãos desertas, o corpo lasso. Fugi. Eu não buscaria porque conhecia a queda, porque já caíra muitas vezes, e em cada vez restara mais morto, mais indefinido -e seria preciso reestruturar verdades, seria preciso ir construindo tUdo aos poucos, eu temia que meus instrumentos se revelassem precários, e que nada eu pudesse fazer além de ceder. Mas no meio da fuga, você aconteceu. Foi você, não eu, quem buscou. Mas o dilaceramento foi só meu, como só meu foi o desespero. Que espécie de coisa o cigarro queimou, além dos cabelos? Sei que foi mais fundo, mais dentro, que nessa ignorada dimensão rompeu alguma coisa que estava em marcha. Eu quis tanto ser a tua paz, quis tanto que você fosse o meu encontro. Quis tanto dar, tanto receber. Quis precisar, sem exigências. E sem solicitações, aceitar o que me era dado. Sem ir além, compreende? Não queria pedir mais do que você tinha, assim como eu não daria mais do que dispunha, por limitação humana. Mas o que tinha, era seu. A noite ultrapassou a si mesma, encontrou a madrugada, se desfez em manhã, em dia claro, em tarde verde, em anoitecer e em noite outra vez. Fiquei. Você sabe que eu fiquei. E que ficaria até o fim, até o fundo. Que aceitei a queda, que aceitei a morte. Que nessa aceitação, caí. Que nessa queda, morri. Tenho me carregado tão perdido e pesado pelos dias afora. E ninguém vê que estou morto.

?

- Não vou perguntar por que você voltou, acho que nem mesmo você sabe, e se eu perguntasse você se sentiria obrigado a responder, e respondendo daria uma explicação que nem mesmo você sabe qual é. Não há explicação, compreende? Eu também não queria perguntar, pensei que só no silêncio fosse possível construir uma compreensão, mas não é, sei que não é, você também sabe, pelo menos por enquanto, talvez não se tenha ainda atingido o ponto em que um silêncio basta? É preciso encher o vazio de palavras, ainda que seja tudo incompreensão? Só vou perguntar por que você se foi, se sabia que haveria uma distância, e que na distância a gente perde ou esquece tudo aquilo que construiu junto. E esquece sabendo que está esquecendo.

domingo, 21 de março de 2010

Ela.


"Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos porque neles vivemos."

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

São apenas bobagens

  “Ora bem, se um dia os adultos acabarem por descobrir quão pobres são as suas ocupações, e como as suas profissões são vazias e falhas de qualquer nexo com a vida, porque não seguir, então, olhando todas essas coisas com os olhos da infância, como se fosse algo exterior e estranho? Porque não olhar tudo de longe, da profundidade do nosso próprio mundo, desde os extensos domínios da nossa própria solidão, que é também trabalho e dignidade e ofício?”.